CHICO MENDES FOI ASSASSINADO a 22/12/1988, MAS A SUA MENSAGEM CONTINUA BEM VIVA E A INCITAR-NOS A CONTINUAR A URGÊNCIA DA SUA LUTA. PRESERVANDO A NATUREZA.
Excerto do romance inédito " Brasil, velório dos sonhos" da autoria de Carlos Santos Oliveira:
"Os dias seguintes passeio-os inteirinhos no Real
Gabinete Português de Leitura, no Rio de Janeiro, a consultar jornais,
revistas, e outras publicações sobre a vida e a obra do Líder. Quanto mais lia,
mais simpatia e comunhão ideológica nutria por ele. Era praticamente um
iletrado, uma criança que começara por aprender o abecedário da vida
trabalhando como seringueiro na floresta, descascando a árvore-da-borracha para
fazer a riqueza dos grandes latifundiários. Os proprietários dos seringais
(florestas de árvores de onde se extrai a borracha), tinham sobre o seu jugo
comunidades imensas, que debilitadas pelas necessidades primárias, escravizavam
a troco de albergues em casinhotos de madeira que os próprios pobres construíam
em territórios dos senhores, e por salários de miséria, que acabavam por gastar
nas lojas cujos donos eram os próprios proprietários dos seringais. Trabalhavam
de madrugada até à noite, numa escravatura consentida pelos Governos Federais,
pelo Poder Central, pela ONU, e por todos os poderes instalados no mundo.
Os grandes latifundiários não tinham
qualquer interesse em que esta gente conhecesse outra realidade, que não fosse
a do trabalho e a de se resignarem à sua condição. A educação nunca seria uma
das suas prioridades, pois o homem analfabeto não poderia ler e assim
aperceber-se e interrogar-se sobre a existência de um outro mundo para além do
da floresta. Também desconheceriam, dessa forma, a possibilidade de contrariar
as gravidezes constantes, que se transformavam num maior número de braços, no
aumento dos lucros destes sicários.
Já no interior das últimas décadas do
século XX, uma boiada de escravos era ainda contida em propriedades feudais e
vergastada pelo trabalho até à exaustão, repetindo séculos de um passado
colonizador, em muitos aspectos semelhante ao das agruras e torturas sofridas
pelos índios.
O Líder só aos vinte anos teve o seu
primeiro contacto com as letras, mas a sua condição inata de homem de direitos,
liberdades e solidariedade, eram já páginas abertas de um livro de lutas
interiores, cujas palavras incontidas eram ensinadas e recitadas entre os
seringueiros.
Devido às suas intervenções, começou a
ser notado e a tornar-se alguém que afrontava a histórica repressão, desde
sempre exercida sobre os trabalhadores pelos grandes proprietários, numa
escravatura improvável, exercida na plenitude e perto de fazer 500 anos, num
país que se regozija e ufana de ser um dos mais desenvolvidos do mundo.
O Líder passou a ser um homem marcado.
Mas a sua luta pela divulgação da verdade e pela conquista da liberdade era uma
marcha imparável onde o medo não tinha presença.
O desmatamento indiscriminado da
Floresta Amazónica passou também a ser um dos temas das suas intervenções, o
que colidia com um sem número de interesses económicos nacionais e
internacionais, para quem se tornou um ruído mais incómodo e uma voz cujo som
começava a alastrar, e a reunir cada vez mais militantes na luta pela
preservação da Amazónia.
Naturalmente, tal convicção posta na defesa de interesses ambientalistas;
de melhores condições de vida dos trabalhadores rurais e de todos aqueles que
reivindicavam um pedaço de terra para poderem produzir e obstar à fome endémica
que os assolava, fez com que obtivesse lugar de destaque como líder sindical de
sindicatos de trabalhadores rurais. Que participasse activamente em acções, nas
quais os nativos defendiam ser os verdadeiros proprietários das terras que
habitavam e não apenas habitantes de reservas que pertenciam aos grandes
latifundiários, vulgo “coronéis”, que delas se apropriaram pelo poder da força.
Participara também activamente nas lutas dos seringueiros que tentavam opor-se
ao abate feroz, impiedoso e homicida das florestas, protegendo as árvores com
os seus próprios corpos, em manifestações pacíficas a que deram o nome de
“empates”.
Para além da actividade sindical, onde
também participou na fundação de sindicatos, o Líder entra no mundo da política
e é eleito vereador em Xapuri, sua terra natal.
Por essa altura a visibilidade que lhe
é dada pela posição política e a possibilidade que esta lhe permite de poder
expressar mais amplamente as suas opiniões, começa a transformá-lo num alvo por
parte dos fazendeiros e dos próprios colegas de partido, que compelidos pela
pressão dos poderes instalados, se começam a incompatibilizar com as suas
acções e pensamentos políticos. O Líder é ameaçado por uns e ostracizado por
outros, num objectivo comum de o silenciarem e darem às suas palavras e lutas
uma outra conotação: a de alguém que apenas pretende desestabilizar e criar
conflitos, com o objectivo de impedir a política de desenvolvimento do país.
Tentam passar a mensagem de que o Líder não é um bom brasileiro, mas antes um
agente subversivo. Conseguem dessa forma que ele comece a ter problemas com a
justiça e seja submetido a violentos interrogatórios, cujas torturas jamais
serão denunciadas e conhecidas na sua verdadeira extensão, devido ao seu
isolamento e à máquina do medo que começara a ceifar a vontade de todos aqueles
que antes se insurgiam contra a escravidão, mas que agora postos perante a
ideia da dor e da morte, ou da continuidade da centenar escravatura, preferiam
mil vezes serem escravos e comer da mão dos senhores os sobejos das suas abastadas
refeições.
Apesar de o tentarem ligar ao
assassinato do capataz de uma fazenda e mais uma vez tentarem interpor as
grades entre ele, a liberdade e a justiça das suas acções, o Líder não desiste
e continua a sua actividade sindical e política.
Como não o conseguem silenciar ou
impedir na sua determinação, sobre ele volta a recair uma acusação, desta feita
de incitamento à violência, da qual será absolvido por falta de provas.
É sob a sua liderança que é criado o
CNS (Conselho Nacional de Seringueiros), e a luta encetada por estes pela
defesa e preservação do seu modo natural de vida torna-se um “boom” de
repercussão nacional e internacional; é lançada uma proposta que tenta unir
todos os povos da floresta em torno da criação de reservas extractivas, que
procuram não só preservar as áreas de implantação de populações indígenas e a
floresta circundante, como pôr em marcha a reforma agrária.
Membros da ONU chegam a estar em Xapuri,
numa visita guiada pelo Líder, e onde podem constatar in loco a
destruição da floresta e a expulsão dos seringueiros, dos indígenas e de outros
povos, levada a cabo por multinacionais, apoiadas por grandes projectos
financeiros nacionais e internacionais. A sua palavra chega além fronteiras e
aos grandes púlpitos mundiais, conseguindo que sejam cancelados alguns
projectos de destruição massiva de algumas colónias humanas e do seu habitat, e
revelando ao mundo a verdade sobre a devastação das florestas, onde se inclui a
maior, a Amazónica. Com estes seus apelos o Líder consegue granjear e congregar
ainda mais o ódio dos políticos, dos fazendeiros e dos grandes latifundiários,
que o acusam de ser um obstáculo ao progresso. Contrariando estas opiniões e
sentimentos, a nível internacional, movimentos de cidadãos e de várias
Organizações, entre as quais a ONU, incitam e apoiam a sua luta na defesa do
meio ambiente, atribuindo-lhe vários prémios pela sua perseverança e pela
justiça das suas acções na defesa de causas solidárias.
Estas “medalhas” que o poderiam cegar
pelo brilho da vaidade, impelem-no ainda a um trabalho mais afincado, não só participando
na implantação das primeiras reservas extractivas que se criaram no Estado do
Acre, como repartindo o restante do seu tempo em seminários, congressos,
palestras e manifestações onde não se cansa de denunciar a morte da floresta e
dos seus povos, às mãos violentas dos poderes instituídos.
As ameaças de morte multiplicam-se, mas
o Líder faz orelhas moucas e a sua coragem supera o medo. Ele sabe que a
qualquer momento pode ser morto, mas a sua vida é apenas uma no seio de
milhares, ou milhões, que pode salvar no tempo actual e no futuro. Não se sente
um Cristo da era moderna, mas alberga no seu íntimo uma fé divina; a de lutar
pela Natureza, pelo Homem e pela Humanidade".